Vamos falar sobre Web3
also available in English: Let's Talk about the 'Real' Web3
Quinta feira participei de uma conversa com dois colegas, sobre coisas relacionadas a esta buzzword, "web3".
Como faz tempo que não atualizo este site, resolvi aproveitar a temática e tirar a poeira daqui. Até para que alguém aterrisando neste blog hoje não fique com a impressão de que eu só falo de videogames :)
Os assuntos de blockchains públicas, DAOs, soberania individual, software livre e cultura de internet são alguns que eu acompanho com boa proximidade e é uma área sobre a qual presto consultoria por aí, tanto profissionalmente quanto informalmente há alguns anos. Mas que ja faz tempo que não escrevo aqui neste canal.
Do começo então, de onde vem o termo Web3?
Segundo a Wikipedia, neste contexto, o termo veio do desenvolvedor Gavin Wood da rede Ethereum1 em uma postagem de blog de abril de 2014: ĐApps: What Web 3.0 Looks Like.
O primeiro parágrafo expõe muito claramente as motivações para um redesenho da web, abaixo com grifos meus:
As we move into the future, we find increasing need for a zero-trust interaction system. Even pre-Snowden, we had realised that entrusting our information to arbitrary entities on the internet was fraught with danger. However, post-Snowden the argument plainly falls in the hand of those who believe that large organisations and governments routinely attempt to stretch and overstep their authority. Thus we realise that entrusting our information to organisations in general is a fundamentally broken model. The chance of an organisation not meddling with our data is merely the effort required minus their expected gains. Given they tend to have an income model that requires they know as much about people as possible the realist will realise that the potential for convert misuse is difficult to overestimate.
Um resumo possível dessa visão, lá de 2014, seria algo mais ou menos na linha — bom, agora que temos Bitcoin2, podemos repensar se o modelo de financiar a web com a venda de dados pessoais, continua sendo um caminho aceitável.
Esta época foi muito interessante em termos de conversas sobre as bases deste possível novo mundo, outros dois textos obrigatórios deste mesmo ano são o "Everyone's a Scammer", de Michael Goldstein, em setembro, e o "The dawn of trustworthy computing", de Nick Szabo, em dezembro (que já citei antes num outro post sobre smart contracts aqui do blog em 2015).
Tanto na entrevista do Galvin linkada na Wikipédia, quanto nos materiais do site da Ethereum, os valores de descentralização e minimização da confiança são duas grandes componentes desta promessa de uma web reimaginada.
No mundo da utopia, o termo Web3 carrega uma promessa de substituir uma necessidade de confiança em poucos poderosos (big techs na Web2) por algo mais espalhado, auditável, resistente à censura, acessível (no sentido de permissionless), voluntária e gerido pelos próprios participantes desta nova web. “Less trust, more truth.”
Mas web3 não é NFT? Onde entram os JPEGs de Macaco?
Crypto Curious - South Park
https://youtu.be/N8f-BQFo7lw
É interessante o exercício de revisitar esta origem, reler os textos da época hoje, muitos anos depois, e se perguntar o que levou a ideia de uma web pós-Snowden virar sinônimo de coleções de imagens JPEG, ferramenta de marketing para empresas oportunistas, uma corrida-do-ouro cheia de vapourware, projetos centralizados, golpistas e fraudes de todo tipo, enfim, um hype super danoso e distópico.
it seems worth thinking about how to avoid web3 being web2x2 (web2 but with even less privacy) with some urgency
Moxie Marlinspike - My first impressions of web3
Se você tem duas horas e quer conhecer uma opinião bem crítica das NFTs sob um ponto de vista de um artista, eu recomendo assistir a este vídeo: "Line Goes Up – The Problem With NFTs", mesmo discordando de algumas partes (em velocidade 1.5 é bem tranquilo se você entende Inglês), mas se estiver sem tempo, assista apenas o capítulo 4, que é um excelente resumo de NFTs em 20 minutos:
Line Goes Up – The Problem With NFTs
https://youtu.be/YQ_xWvX1n9g
Talvez seja o curso natural das buzzwords que carregam consigo grandes promessas, o de ser cooptada pelo marketing e de se esvaziar de sentido.
Há algum trigo nesta montanha de joio?
Um hype tão grande quanto este merece atenção ainda assim?
Se você acompanha notícias sobre onde o venture capital anda sendo investido, bem como o fluxo, entre diferentes startups, de pessoas/talentos (este sim o verdadeiro bem escasso) na área de tecnologia, este é um caso de onda "muito grande para ser menosprezada" (too big to overlook) nas palavras do jornalista Kevin Roose em seu guia de crypto para o New York Times. Ele escreve (e eu concordo):
I’ve also learned, in my career as a tech journalist, that when so much money, energy and talent flows toward a new thing, it’s generally a good idea to pay attention, regardless of your views on the thing itself.
A título de comparação, durante a bolha das empresas ponto com, a euforia e o medo de ficar de fora direcionou fortunas para muitas apostas erradas e o posterior estouro da bolha trouxe lições importantes para a nossa sociedade. Mas nem tudo foi fracasso, projetos como a Wikipedia e o Internet Archive nasceram nesse período. E outros grandes sobreviventes, como Google e Amazon, parece que aproveitaram alguns benefícios de terem estado lá desde o início.
Considero importante observar, conhecer e até participar com critério, das subculturas, memes e tecnologias que fazem parte da vida dos jovens e early-adopters de hoje. Para esta geração, comprar shitcoins, ser hackeado, perder dinheiro, embarcar em empreitadas furadas, sonhar com Lamborghini, gastar a mesada com skins, é parte do caminho de se encontrar, encontrar pares, viver e crescer. De certa maneira, todas estas experiências ruins são também escolas.
Uma jovem que aprende Rust para escrever smart contract na Solana, ou alguma outra altcoin hoje, não terá disperdiçado totalmente sua energia, ela sairá com um conhecimento importante na bagagem. O mesmo vale para quem instalou Metamask para colecionar gatinhos e se decepcionou com o preço do "gás", essa pessoa teve contato com BIP39, teve algum treinamento e teve que parar para pensar sobre soberania individual. Um CEO, CTO ou diretor de empresa interessado em alguma permissioned ledger porque alguém de terno vendeu para ele uma "solução", pode eventualmente esbarrar com videos do Antonopoulos e iniciar sua própria jornada individual rumo à pílula laranja. E assim por diante… Errar tentando ainda é mais educativo do que não tentar. Ou nas palavras do militar John Paul Jones, pai da marinha americana: "quem não arrisca não pode vencer".
Recuperando o termo
Para fechar, acho importante reclamarmos de volta esta buzzword para ser novamente sinônimo de algumas idéias de autonomia, independência, sobreania, privacidade, liberdade de expressão… e direcionar nossos esforços para um mundo com menos poder concentrado, mais software livre, mais servidores caseiros, mais iniciativas robustas e self-hosted, enfim, uma verdadeira Web Pós-Snowden, afinal, como diz o André Staltz, em sua resposta a uma generalização do Moxie Marlin: "algumas pessoas querem rodar seus próprios servidores".
Gosto desse tweet:
When an incumbent says "Web3.0", they really mean the most nightmarish version of Web2.0 imaginable.
— Start9 (EmbassyOS) 🏛️ (@start9labs) December 12, 2021
The real Web3.0 will be a grass roots movement, driven by sovereign individuals running open source software on commodity hardware connecting on P2P networks without permission.
Foto do cabeçalho por Wioleta Zakrzewska on Unsplash
Apêndice: Retrospectiva dos últimos oito anos
Da origem do termo Web3, naqueles primeiros anos após o presente de Satoshi para o mundo, até hoje, muita coisa aconteceu.
No campo da Ethereum, tivemos tokens ERC-20; a onda das ICOs; o hack da "The DAO"; cripto-gatinhos; ERC-721; EIP-1155 redes de segunda camada (layer 2) como a Polygon, outros forks e redes alternativas…
No campo da Bitcoin, com o qual eu particularmente tenho um maior alinhamento de valores, houve a guerra pelo tamanho do bloco; os movimentos UASF (BIP148) e No 2x que garantiram importantes upgrades no protocolo; a rede layer 2 Lightning Network floresceu e continua evoluindo (vide a recente entrada do Taproot); wallets e exchanges focadas em privacidade; projetos abertos de hardware wallets e full nodes caseiros com foco em usabilidade; satélite espacial; desmistificação da mineração caseira; El Salvador; as comunidades brasileiras andam conversando mais…
E, claro, a ajuda que certas arbitrariedades políticas deram para acelerar a conscientização de que a separação entre dinheiro e estado é importante.
Ethereum: uma "altcoin" que se propõe a ser um computador "descentralizado", ou, nas palavras do Gavin Wood: "a completely generalised global transaction processing system". ↩
Há de se considerar o contexto, o texto do Gavin Wood foi escrito numa época em que as pessoas buscavam um "Bitcoin 2.0", ele próprio acreditava que a Ethereum era esta evolução e estava vendendo esta ideia de que a rede concorrente dele era supostamente melhor. No meu resumo eu tomei a liberdade de usar Bitcoin, pois foi o projeto que de fato nos deu o que antes dele não havia, foi quem resolveu o problema de transferência de valor no ciberespaço. ↩