Incentivando a soberania individual e uma boa esfera pública

Nota do tradutor: traduzir não significa endossar cada idéia ou palavra, o texto abaixo reflete (na medida da minha habilidade limitada) o pensamento do autor original, que diverge do meu próprio em alguns pontos. Ainda assim acho um texto importante pro debate e que deve estar acessível em Português.


(Tradução do original Encouraging individual sovereignty and a healthy commons de Aral Balkan por Fabricio Campos Zuardi, revisado por Juliana Zanatta de Antoni e Marcia Campos Zuardi)

O manifesto de Mark Zuckerberg exibe sua visão de uma colônia global centralizada, e governada por uma oligarquia do Vale do Silício. Eu proponho que façamos exatamente o oposto disso, e que criemos um mundo propício aos recursos comuns e com indivíduos soberanos.


Somos seres compartilhados.
Vamos construir um futuro onde a propriedade e o controle sobre todos os aspectos de nós mesmos sejam nossos.

Mark Zuckerberg publicou um manifesto entitulado Building Global Community no qual ele detalha como ele — um dos 8 maiores bilionários do mundo — e sua tortuosa multinacional americana, Facebook Incorporated, irão resolver todos os problemas do mundo.

Em sua grande visão para a humanidade, Mark insiste na idéia de que o site Facebook fundamentalmente “nos aproxima mais uns dos outros” (brings us closer together) por “conectar amigos e familiares” (connecting friends and families). O que Mark esquece-se de mencionar é que o Facebook não conecta as pessoas entre elas; o Facebook conecta as pessoas à corporação Facebook.


Facebook: o mito
Mark quer que você acredite que o Facebook conecta você aos outros.


Facebook: a realidade
Facebook conecta você à Facebook, Inc.

O modelo de negócios do Facebook é ser o atravessador; monitorar cada passo que você, sua família, e seus amigos dão, armazenar toda essa informação por tempo indeterminado, e analisá-la continuamente para conhecê-lo melhor e assim poder te explorar e manipular para fins comerciais e políticos.

O Facebook não é uma rede social, é um scanner que digitaliza seres humanos. É, no fim das contas, a câmera que captura sua alma. O negócio do Facebook é simular a sua pessoa, é ser dono e ter controle sobre essa simulação, consequentemente, ser o seu dono e controlar você.

Eu chamo o modelo de negócios do Facebook, Google e toda a cauda-longa de startups do Vale do Silício financiadas por capital de risco de “people farming”. Facebook é uma fazenda industrial de seres humanos. E o manifesto de Mark nada mais é do que uma última tentativa juvenil por parte de um bilionário em pânico de dourar a pílula indigesta que é um modelo de negócios baseado no abuso dos direitos humanos com um falso propósito moral para escapar de regulamentação e justificar algo que é escancaradamente um desejo colonizador: criar um feudo global conectando todos nós com a Facebook, Inc.

Evitando uma Colônia Global

O manifesto de Mark não é sobre construir uma comunidade global, é sobre construir uma colônia global — com ele próprio de rei e sua empresa e oligarcas do Vale do Silício como a côrte.

Não é função de uma empresa “construir a infraestrutura social para comunidades” (develop the social infrastructure for community) como Mark quer fazer. Infraestrutura social deve ser um bem comum, não propriedade de corporações gigantescas e monopolistas como o Facebook. O motivo de nos encontrarmos nessa merda com vigilância absoluta, bolhas-filtro, e notícias falsas (propaganda) é justamente termos permitido a destruição completa e total da esfera pública por um oligopólio de infraestruturas privadas que se passam por espaço público.

O Facebook quer que pensemos que ele é um parque, quando na verdade ele é um shopping center. A última coisa que precisamos é de mais infraestrutura digital centralizada para resolver os problemas causados por uma concentração sem precedentes de poder, riqueza, e controle num minúsculo número de mãos. Já passou da hora de começarmos a financiar e construir os equivalentes digitais dos parques na era digital ao invés de construirmos shoppings cada vez maiores.

Outros já escreveram extensas críticas ao manifesto de Mark. Não repetirei os esforços deles aqui. Quero ao invés disso concentrar-me em como nós podemos construir um mundo que se ponha como um claro contraponto à visão de Mark. Um mundo no qual nós — indivíduos - e não corporações, tenhamos o controle e sejamos donos de nós mesmos. Ou seja, que tenhamos soberania individual.

Enquanto Mark lhe pede para confiar nele para ser seu rei benevolente, eu digo, vamos construir um mundo sem reis. Enquanto a visão de Mark está enraizada em colonialismo e perpetuação de controle e poder concentrados, a minha baseia-se na soberania do indivíduo e numa esfera pública saudável e distribuída.

Soberania individual e o ser ciborgue

Não podemos mais nos dar ao luxo de não entender a natureza do eu na era digital. A existência de nossas liberdades e democracia dependem disso.

Nós somos (e temos sido já há algum tempo) ciborgues.

Não no sentido do estereótipo comum a ciborgues da ficção científica, onde a tecnologia é implantada no tecido biológico. Mas sim numa definição mais genérica do termo que aplica-se a qualquer extensão de nossas mentes e dos nossos corpos biológicos usando tecnologia. Ainda que implantes tecnológicos sejam certamente viáveis, possíveis e demonstráveis, a principal maneira pela qual nos expandimos tecnologicamente hoje não é por meio de implantes, mas por meio de extensões (explants).

Somos seres compartilhados; a soma dos nossos vários aspectos contidos tanto nos nossos corpos biológicos quanto nas incontáveis tecnologias que usamos para estender nossas habilidades biológicas.


Devemos proteger constitucionalmente a dignidade e santidade da pessoa estendida.

Quando isso fica claro, o que se segue então é que devemos aumentar as proteções do indivíduo para além dos limites biológicos, de forma a alcançar também aquelas tecnologias que usamos para expandir nossos seres. Assim sendo, qualquer tentativa de terceiros no sentido de adquirir, controlar e comercializar nessas tecnologias é uma tentativa de adquirir, controlar e comercializar os pedaços de uma pessoa. É, resumidamente, uma tentativa de adquirir, controlar e comercializar pessoas.

Obviamente, devemos resistir fervorosamente a qualquer tentativa de reduzir pessoas a propriedade. Não o fazer seria consentir tacitamente uma nova modalidade de escravidão: uma onde comercializamos não o lado biológico dos seres humanos, mas sim sua faceta digital. Ambos aspectos, claramente, são interligados e não existem de maneira separada, já que a manipulação de um necessariamente afeta o outro.

Superando o Capitalismo de Vigilância

Quando entendemos que nossa relação com a tecnologia não é uma do tipo mestre/mordomo mas sim uma do tipo ciborgue/órgão; quando entendemos que expandimos nossos seres com tecnologia e que nossos dados e tecnologias vivem dentro dos limites do indivíduo, torna-se então imperativo insistir para que as proteções constitucionais da pessoa que preservamos como parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos e que implementamos através de múltiplas leis federais sejam estendidas para proteger também a pessoa ciborgue.

Assim sendo, quaisquer tentativas de violar as fronteiras do indivíduo devem ser consideradas como um assalto ao indivíduo ciborgue. É exatamente esse abuso que constitui o modelo de negócios diário do Facebook, Google e tecnologias de massa inspiradas no Vale do Silício hoje. Nesse modelo, que Shoshana Zuboff chamou de surveillance capitalism, aquilo que perdemos é a soberania individual. Pessoas tornaram-se novamente propriedade — porém na forma digital e não biológica.

Para combater isso, devemos construir uma infraestrutura nova que permita às pessoas retomarem sua soberania individual. Os aspectos da infraestrutura que dizem respeito ao mundo que nos cerca devem ser bens comuns e aquelas partes referentes às pessoas — as partes que formam os órgãos dos seres ciborgues — devem pertencer e ser controladas pelos indivíduos.

Então, por exemplo, a arquitetura de uma cidade inteligente (smart city) deve ser um bem comum, e os dados sobre o mundo onde vivemos ("dados sobre coisas") devem pertencer à esfera pública, enquanto aparelhos como o seu carro inteligente (smart car), smart phone, smart watch, smart ursinho de pelúcia, etc., e os dados coletados por eles("dados sobre pessoas") devem pertencer a você.

Uma Internet de gente

Imagine um mundo onde todos possuem seu próprio espaço na Internet, erguido a partir do bem comum. Este seria um espaço privado (um órgão do ser ciborgue) onde todos os nossos assim denominados smart devices (também órgãos) se conectam.

Ao invés de pensar nesse espaço como uma nuvem privada (personal cloud), devemos considerá-lo um nó, especial e permanente, dentro de uma estrutura peer-to-peer onde todos os nossos diversos aparelhos (órgãos) conectam-se entre si. Na prática, este nó permanente seria usado para garantir encontrabilidade (inicialmente por meio de domínios/domain names) e disponibilidade (sendo hospedado/hosted/always on) enquanto ainda migramos de uma arquitetura cliente/servidor da Web atual para uma arquitetura peer-to-peer da Internet da próxima geração.


Uma Internet de pessoas.

A infraestrutura que construirmos deve ser fundada no bem comum, pertencer à esfera pública e ser interoperável. Os serviços em si devem ser construídos e hospedados por uma variedade de organizações individuais — não governos ou corporações gigantescas — trabalhando com protocolos compatíveis e competindo entre elas para fornecer o melhor serviço possível às pessoas que elas servem. Não por coincidência, este escopo fortemente limitado da função de uma empresa demarca o meu entendimento sobre qual o papel de corporações numa democracia.

O propósito único de uma corporação deveria ser o de competir com outras empresas para fornecer o melhor serviço às pessoas a quem elas servem. Este é um conceito completamente contrastante com a anistia generalizada que essas empresas desfrutam hoje, e que as permitem atrair pessoas (chamadas de "usuários") sob falsas premissas (serviços gratuitos onde elas são o produto à venda) apenas para viciá-las, aprisioná-las usando tecnologias proprietárias e incompatíveis (lock-in), cultivá-las, manipular seus comportamentos, e explorá-las para ganhos financeiros e políticos.

Na corporocracia de hoje, nós — indivíduos — servimos às empresas. Na democracia de amanhã, empresas devem nos servir.

Os provedores de serviços devem, obviamente, ser livres para aumentar as capacidades do sistema contanto que compartilhem suas melhorias de volta para a esfera pública ("share alike"), evitando assim o aprisionamento (lock-in). Por prestarem serviços adicionais, não cobertos pelos mais básicos que seriam financiados com recursos comuns, organizações individuais podem definir seus preços e cobrar por serviços extras que adicionem valor. Desta maneira, podemos construir uma economia competitiva e saudável a partir de um alicerce mais ético. E podemos atingir esse objetivo sem emaranhar o sistema todo em rebuscadas burocracias governamentais que inibem a experimentação, a competição e a evolução orgânica e descentralizada do sistema.


Uma economia saudável feita a partir de uma base ética.

Interoperabilidade, tecnologias livres com licenças virais ("share-alike"), uma arquitetura peer-to-peer (em oposição à uma cliente/servidor) e uma base mínima financiada com recursos comuns são as garantias essenciais para prevenir que este novo sistema degenere para uma versão da web monopolista espiã que temos hoje. Elas são a maneira de evitar economias de escala e de quebrar o ciclo de autoalimentação entre o acúmulo de informação e de riqueza que é a força-motriz do capitalismo de vigilância.

Para ser completamente claro, não estamos falando sobre um sistema que pode acontecer sob as regras de um capitalismo de vigilância em estado avançado. É no entanto, um sistema que pode ser construído sob as condições atuais, para funcionar como a ponte entre o status quo e um mundo pós-capitalista sustentável.

Construindo o mundo que você quer morar

Numa palestra que eu dei num evento da Comissão Européia em Roma recentemente, eu disse aos ouvintes que precisamos “construir o mundo onde queremos viver”. Para mim, esse não é um mundo pertencente a uma porção de oligarcas do Vale do Silício e controlado por eles. É um mundo com uma esfera pública sadia onde nós — como uma comunidade — coletivamente somos donos e controlamos os aspectos da nossa existência que são nossos, e onde nós — como indivíduos — individualmente somos donos e temos o controle sobre os aspectos de nossa existência que pertencem a nós mesmos.

Imagine um mundo onde você (e aqueles que você ama) possuem voz ativa na democracia; onde todos nós desfrutamos de bem-estar básico, direitos e liberdades dignas de um ciborgue. Imagine um mundo sustentável, livre da ganância destrutiva de curto-prazo, onde nós não mais recompensamos sociopatas por descobrirem novas maneiras cada vez mais brutais e destrutivas de acumular riqueza e poder às custas de todos os demais. Imagine um mundo livre desconectado do ciclo vicioso do medo fabricado e da vigilância ubíqua que têm descambado profundamente num ralo de fascismo. Imagine um mundo onde nós nos concedemos a chance de uma existência intelectualmente recompensadora onde somos livres para explorar o potencial de nossa espécie junto às estrelas.

Este é o mundo que eu quero acordar diariamente para construir. Não porque é um ato de caridade. Não porque eu sou um filantropo. Na verdade, por nenhuma outra razão senão a de ser este o mundo onde eu quero viver.


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Fabricio Campos Zuardi

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