A base do capitalismo
Um amigo uma vez me disse:
A confiança é a base do capitalismo.
Gosto deste mantra, acho que faz sentido e o uso com frequência no meu cotidiano, em discussões sobre economia, modelos de sociedade, moral, etc.
Um sistema de trocas voluntárias, livre iniciativa e contratos entre indivíduos como é o capitalista funciona melhor quando partimos da premissa de que uma parte substancial desses indivíduos possuem boa índole e que até certo ponto as pessoas podem confiar umas nas outras.
A partir do momento que o número de espertos é grande o suficiente, ou com poder acumulado o suficiente, as trocas passam a ser arriscadas e injustas, a confiança vai embora e o sistema perde suas vantagens.
Em outras palavras, quando alguém se pergunta coisas como:
- "Quem garante que se eu emprestar dinheiro para um amigo ele vai me devolver?"
- "Quem garante que, após eu entregar o site que fui contratado para fazer, meu cliente não vai dar calote?"
- "Como podem os bancos nos Estados Unidos funcionarem sem portas giratórias e detectores de metais?"
- "Eu não manjo nada de mecânica, quem garante que meu carro precisa mesmo trocar esta peça e quem me garante que o cara que eu paguei para fazer o serviço de fato a trocou?"
- "Como saber se a gasolina aqui é batizada? Será que este pãozinho tem bromato? Será que esta bolacha tem gordura trans?"
- "Como o caixa do supermercado pode saber se o cliente tomou um Yakult da prateleira sem pagar?"
- "Quem me garante que a Internet que eu contratei por uma velocidade X será entregue com esta velocidade?"
- "Como pode um posto de estrada no interior funcionar na base da pessoa do caixa me perguntar o que eu consumi apenas, sem fichas de papel ou cartão com código de barras?"
- "Como assim o carteiro da UPS deixa a encomenda da Amazon na calçada da casa do cara na Califórnia caso ele não esteja lá para receber?"
- "Como garantir que o passageiro do meu táxi vai me pagar o valor do taxímetro quando a corrida terminar?"
A resposta em maior ou menor grau é mais ou menos a mesma: ninguém garante. A confiança é requisito.
As coisas quando funcionam, funcionam porque existe o fio do bigode, a palavra, a honra, a vergonha, a pressão dos pares, a educação. E algumas convenções sociais e leis que são conhecidas e respeitadas. Na democracia, em última instância, existe também um grupo eleito pelos participantes que está autorizado a usar da força, mas podendo evitá-lo, melhor.
Confiança traz segurança e a falta dela traz vulnerabilidade. O funcionário de um patrão não confiável está sujeito a trabalhar sem ser pago. O mesmo vale para um credor que empresta sem garantias, estabelecimentos comerciais em áreas com ladrões, leigos a mercê de especialistas maliciosos e, numa cultura de impunidade que glorifica o jeitinho, quase todos os honestos.
https://www.youtube.com/watch?v=2ujmpzObjq0
Pausa para um probleminha de teoria dos jogos…
Enunciado:
Dado um motorista de táxi M
, um passageiro P
e uma juiza justa J
, formule uma maneira de M
receber de P
o valor informado pelo taxímetro e P
receber de M
o transporte até o local combinado (ou uma indenização por quebra de contrato) assumindo que com excessão de J
, qualquer um dos outros dois pode ser sacana.
Minha solução
Um possível arranjo/protocolo que eu proporia para resolver este problema seria:
M
pede para queP
pague um valor Vp àJ
(Vp é 2 vezes o preço que oM
acha que vai dar a corrida)P
pede para queM
pague um valor Vm àJ
(Vm é um valor de indenização queP
aceita receber casoM
não o transporte para o local combinado)M
eP
concordam que ao fim da corrida, se ambos autorizarem,J
devolve o calção Vm aM
e paga o valor da corrida Vc aM
. Todo o resto (Vp - Vc)J
devolve aP
M
eP
concordam que sob qualquer alegação de um dos lados ter sacaneado,J
tem a palavra final sobre quem foi o prejudicado e deve dar todo o dinheiro para o lado que foi o lesado.M
paga Vm aJ
eP
paga Vp aJ
J
confirma que ambos pagaram e autoriza o início da corrida.
Obviamente no dia-a-dia não fazemos contratos semelhantes a este para a compra de produtos ou serviços pequenos, pois assumimos de antemão que o outro lado é confiável e que não precisaremos de um árbitro.
A base da Internet
Na Internet, ninguém sabe que você é um cachorro, e isto é fantástico! A rede é inclusiva, livre e aberta. Pouco é exigido de quem quer conversar em TCP/IP, e sem esta característica fundamental, não teríamos a oportunidade de experimentar este Mundo de Pontas tão incrível que não tem dono, todos podem usar, qualquer um pode melhorá-lo e que "interpreta censura como um defeito e roteia para contorná-la".
"Internet dog" by Peter Steiner.
Estas características tornam também tudo um pouco mais complicado quando o assunto é segurança e confiança. Em redes de computadores (e computação em geral), confiança é um objetivo muito difícil de ser alcançado. Conceitos como "fio do bigode", palavra, honra e vergonha são coisas humanas demais para serem aplicadas ao mundo frio, lógico e exato dos zeros e uns.
A desconfiança é a base da Internet
Uma máquina que se apresente dizendo ser João, deve ser considerada Maria até que se prove o contrário. Um email dizendo que você ganhou um prêmio, ou uma janela popup alegando ser do seu banco e pedindo dados, ou mesmo os nudes da gatinha que você conheceu na rede social não devem ser encarados como sendo verdadeiros e de boa fé, todo cuidado é pouco.
O mesmo vale para sistemas de código fechado. Desconfiança deve ser a norma. Uma empresa que jure que um software faz apenas o que ela diz fazer deve ser encarado como um sistema malicioso que já está fazendo coisas escusas sem sua autorização até que prove-se o contrário, e a maneira mais simples de provar o contrário neste caso é ler o código e compilá-lo você mesmo. Um app de lanterna que diz ser apenas lanterna e pede autorização para ter acesso ao GPS do smartphone não é apenas um app de lanterna, um sistema operacional que oferece checkbox de "não envie dados da minha máquina para o fabricante" deve ser encarado como um que ignora estes checkboxes, uma urna eletrônica, com código-fonte fechado ou com código-fonte não totalmente público, sem voto impresso e que não admite auditoria séria, vendida como justa e segura deve ser encarada como fraude, sempre.
Com isto em mente surge a pergunta: é possível uma rede distribuída ser segura? Dado que não se pode confiar em ninguém, como minimizar a confiança necessária?
A procura por respostas a estas perguntas constitui todo um campo de pesquisa científica e uma área de oportunidades para inovação jovem e efervescente.
Sistemas que alguns chamam de "trustless", ou como o pesquisador Nick Szabo prefere: "trust-minimized", junto com o conceito de "smart contracts", "smart properties" ou ainda "Bitcoin 2.0" (a invenção de Nakamoto com o protocolo bitcoin, as regras de consenso e a "prova de trabalho" abriu muitas portas) são temas quentes!
A idéia por trás do conceito de smart contracts é a de que algorítmos podem ser os juízes em arranjos onde as partes envolvidas não podem confiar umas nas outras. É uma maneira de cortar a necessidade de intermediários como advogados, cartórios ou governos para fazer valer contratos claros e simples (um programa de computador) entre indivíduos.
O exemplo do contratinho acima com 6 passos poderia ser programado facilmente num computador baseado em block chain e utilizado na vida real se a moeda fosse a usada por esse computador (bitcoin e ethereum são dois exemplos de computadores/moedas desse tipo).
Gosto do termo "programmable money" (dinheiro programável) que o Andreas Antonopoulos frequentemente usa para se referir ao Bitcoin e outras criptomoedas que permitem endereços multiassinatura e pagamentos para um script.
https://www.youtube.com/watch?v=44zHvG9Xypo
https://www.youtube.com/watch?v=xUNGFZDO8mM
O artigo The dawn of trustworthy computing foi uma das grandes fontes de inspiração para este post, recomendo. Esta galera está propondo experimentos e plataformas de potencial disruptivo inimaginável, acreditam ser possível unir o melhor destes dois mundos:
A resiliência das redes descentralizadas com uma confiabilidade que não é natural deste meio… e que até pouco tempo atrás se acreditava ser inalcançável.
Foto do cabeçalho: CONTRACT
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